quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Pipa


(um texto guardado com carinho)

- Tô aqui pensando no amor.
- Amor? Mas que bobagem. Você sempre se perde pensando nisso e eu já cansei de dizer que amor é bobagem.

Foi assim que começou a conversa entre o poeta e um amigo querido. Os dois cresceram juntos, sonharam juntos, descobriram muitas das melhores coisas do mundo juntos. Mas o poeta escolheu ser poeta e o amigo escolheu ser rico. E a distância entre esses dois mundos era muito grande.

O poeta morava em outra cidade e seu amigo morava no centro financeiro do país. Não bastou para ele uma boa faculdade, ele fez duas e logo se empregou em um grande banco que lhe abriu as portas para o mundo do dinheiro, dos bônus, das viagens internacionais e de tudo aquilo que pudesse ser ostentado. O poeta seguiu seu rumo sem pressa de chegar, porque sabia que não havia mesmo aonde chegar. No seu caminho encontrou flores e sorriu, encontrou amigos e curtiu, recebeu convites para programas que ele nem sabia que existiam e se divertiu como ninguém.

A vida de um era toda focada na competição. Quem tem mais? Quem pode mais? Quem fala mais grosso? E por aí vai. A do outro, focada na realização de sonhos e fantasias que ele percebia possíveis com muito mais facilidade do que os outros.

Naquele dia o poeta queria falar de amor e puxou a conversa. Seu amigo tão querido, no entanto, não conseguia mais ouvir aquela palavra sem se incomodar. Pra que pensar em amor? dizia ele. Amor é uma parte da infância que ficou lá atrás quando paramos de frequentar os parques de diversão, as colônias de férias e aquelas reuniões sem sentido na beira da praia para ver o sol se por. Amor é muito bom quando você não sabe o que quer, ocupa a mente. Mas hoje em dia, francamente, falar de amor como se ele fosse possível não é sinal de inteligência... E o seu longo discurso parecia não ter fim. Argumento após argumento, o amigo tentava convencer o poeta de que amor não existe.

E o poeta que queria falar do seu momento começou a ficar muito preocupado com o amigo. Você tem mulher e filhos. Não sente amor por eles? E ele dizia que sim, mas que esse amor era carregado de orgulho porque a filha mais velha já falava três idiomas e o filho mais novo era o maior da classe, ainda que no maternal. E a mulher? A mulher era a companhia perfeita para os eventos sociais que aconteciam quase toda noite. Sabe se vestir como ninguém, tem uma pele ótima, fala sobre diversos assuntos e sempre se comporta de forma muito atenciosa. Sim, o amor do amigo era permeado por valores que nada tinham a ver com o amor a que o poeta se referia.

E quanto mais o amigo falava, mais preocupado o poeta ficava. E preferia ficar em silêncio ouvindo aquilo tudo sem emitir opinião, sem questionar, sem duvidar. O amigo parecia muito seguro das suas escolhas e o poeta sabia o quanto elas os distanciavam e, por isso mesmo, preferia evitar o confronto. Até o momento em que o amigo perguntou: - Mas você ia falar sobre o amor. Está apaixonado de novo? Encontrou alguma mulherzinha nova?

Mulherzinha???? Como assim? Aí foi demais, até mesmo para o poeta.

- Não amigo, não estou apaixonado por ninguém. Estava pensando no amor do qual sou feito, das pessoas que passaram na minha vida e me deixaram marcas tão profundas que me transformaram por inteiro. Hoje sou um pouco de Bia, um tanto de Claudia, muito de Ursula, outro tanto de Cristiana, um bocado de Monica e por aí vai. Cada pessoa que me amou e que eu amei na vida deixou uma marca em mim e hoje fazem parte de quem eu sou. Acho que só é possível ser poeta assim, juntando pedaços de sonhos e misturando eles com um retalho de uma lembrança e depois botando de molho nas risadas e momentos que já vivi. Me sinto, e a cada dia mais, feito de amor. Esse mesmo em que você não acredita.

- Pois eu me sinto sólido, tranquilo. Tenho tudo o que sonhei ter na vida. Tenho dinheiro, tenho casa. Tenho conta no exterior. Tenho o carro que sempre quis ter. Se você é feito de amor, então eu sou feito de que?

- Você também é feito de amor meu amigo. Só que está todo coberto de espelhos que só refletem os outros e que só servem para trocar por comida com os índios.

- Que conversa maluca é essa. Então você acha que tudo o que consegui não vale nada?

- Se você não souber usar o “tudo o que você conseguiu” não, isso não vai servir pra nada. Acho que com o dinheiro e as coisas que você tem hoje você já poderia ter a sua fazenda tão sonhada, lembra? Aquela que teria uma mangueira enorme para você subir e comer a fruta no pé junto com seus filhos. Você também podia ter outro cavalo com uma marca branca na cara como teve na infância e podia ensinar seus filhos a andar a cavalo no mato e não em um clube de campo. Você podia comprar um presente bem bonito para aquela menina que te olhava de um jeito que deixava você sem jeito. E também podia comprar papel de seda e ensinar seus filhos a fazerem pipa como a gente fazia na infância. Mas se você não faz nada disso... esse tanto de coisas que você conseguiu não serve pra nada mesmo, serve?

E o amigo, ao invés de se aborrecer, lembrou-se do tempo em que andava a cavalo na fazenda da infância e das pipas que fez junto com os moleques da rua e dos pegas de bicicleta e das brincadeiras de esconde-esconde e tantas outras coisas que já tinham morrido na sua memória. Deu um suspiro e, com um tom superior de quem tem pena do outro, disse: - Você é incorrigível, me fez lembrar de um monte de coisa que já morreu e que não me importa mais. E riu como riem os tolos e aproveitou a deixa para dizer: - Nossa, já estou atrasado. A conversa está ótima, mas preciso ir. E assim se despede, sai de cena deixando a conta paga e segue cheio de promissórias vencidas na lembrança.

Entrou no carro com uma lágrima escorrendo no rosto e foi para casa ao invés de ir ao escritório. E chegou com seus filhos ainda acordados e ganhou uma festa grande como nunca imaginou que era possível. Sua mulher estranhou e perguntou se estava tudo bem. E ele disse que sim e olhou fundo nos olhos dela e perguntou: - Já te disse que te amo hoje? E ela sorriu. E ele ficou brincando com os filhos até que eles fossem dormir e convidou a mulher para jantarem juntos e sozinhos num restaurante novo e aconchegante que ele havia ouvido falar. E no jantar sorriram e se beijaram e com a luz das velas juraram amor um ao outro e começaram a fazer planos para um futuro próximo e ele sentiu o coração pulsar de novo.

Na volta para casa o porteiro apareceu com um embrulho leve e sem jeito e disse que um rapaz tinha deixado aquilo para ele. Quando abriu, em casa, encontrou papel de seda de várias cores, algumas varetas, linha de carretel e cola branca. Junto um bilhete que dizia:

- É só pra você lembrar como é bom voar, amigo querido.


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