quinta-feira, 21 de junho de 2012

Raio de Sol


(Esse texto foi escrito em 1995 para Cristiana Facchinetti, um dos mais bonitos raios de sol que vi na vida)

Certo dia o Poeta ouviu uma estranha história sobre os índios, que ficou na cabeça dele por muito e muito tempo, até que um dia ele a colocou no papel. Era mais ou menos assim...

Era uma vez... em algum lugar, há muito e muito tempo, uma aldeia de índios, que viviam felizes no meio do mato. Os limites da vista eram os limites do mundo que existia para eles e todos na Aldeia se tratavam como uma grande família.

O programa preferido de todos eles, sobretudo das crianças menores, era sentar ao redor da fogueira para ouvir histórias diferentes, sobre mundos diferentes. Essas histórias eram sempre contadas pelo mais velho membro da Aldeia porque assim os mais novos poderiam ouvir, aprender e contá-las no futuro quando fossem eles os mais velhos da Aldeia e, as histórias não se perderiam jamais.

Num daqueles dias especiais, como sempre são os dias das histórias escritas, um pequeno índio resolveu ter com o Cacique, depois da história contada. Algumas coisas pareciam não fazer sentido e o pequeno índio achou que o Cacique poderia ajudá-lo a compreender.

O Cacique o recebeu em sua tenda, muito disposto a ajudá-lo e pronto para ouví-lo. Mas quando ele chegou  e sentou-se a sua frente, o pequeno índio percebeu que não sabia sequer por onde começaria e, logo, tentou inverter a situação.

- Querido Pai da Aldeia - nome que os Caciques ganhavam quando viravam Caciques - há tanto o que saber que eu nem sei por onde começar e, por isso gostaria que você me falasse de quando você tinha a minha idade.

- Meu filho, Promessa de Luz, quando eu tinha a sua idade não tinha sua aflição. Talvez eu possa ajudá-lo, mas você tem que me dizer o que o incomoda tanto.

- É isso mesmo !

- Como !?!

- O que me incomoda é o incômodo, o que me aflige é a aflição e o que me dá medo é o medo. Não sei como é que você acertou, assim de cara, mas é isso mesmo.

E o Cacique pacientemente viu que teria um certo trabalho em ajudar o pequeno índio e, decidiu convidá-lo para um passeio no dia seguinte, para fora dos limites do alcance da vista, fora do seu mundo. O jovem a princípio ficou fascinado: - Mas, pode ? É claro que podia explicou o Cacique. O simples fato de você não conseguir ver não faz com que as coisas não existam, se o seu problema são limites vamos começar por expandí-los.

O Cacique foi dormir e o menino foi para sua tenda rolar a noite toda em busca de um sono que nunca vinha. Na manhã seguinte, antes do galo cantar, e como cantavam os galos daquela tribo, o Cacique já estava sentado do lado de fora da cabana do pequeno índio, contemplando o amanhecer. Quando o galo cantou o menino saiu em disparada para fora e, quase caiu em cima do Cacique que tranquilamente já o aguardava.

- E então, vamos ? - Uma mistura de ansiedade e expectativa transpareciam no rosto do menino. E, foram.

Andaram por cerca de meia hora e o menino resolveu falar pela primeira vez. - Pai da Aldeia, nós já andamos bastante e o limite da minha vista parece continuar no mesmo lugar. Será que a gente não vai chegar nunca ? E o Cacique convidou Promessa de Luz para sentar pela primeira vez.

- Olhe para trás. Você ainda consegue ver a Aldeia ? E o menino virou-se, e percebeu que era impossível avistá-la, ela tinha saído do limite dos olhos dele e ele ficou verdadeiramente apavorado e levantou-se. - Mas Pai da Aldeia, será que a Aldeia não existe mais ? O que aconteceu com ela ? Foi algum Deus que tirou ela do limite dos meus ohos ? E o Cacique tentou acalmá-lo e mandou que ele sentasse de novo.

- Sabe, Promessa de Luz, a Aldeia continua no mesmo lugar, na verdade é você quem está fora do limite dos olhos dela. Pela primeira vez você está descobrindo que o limite dos olhos é um limite imposto por você mesmo e, que as coisas não existem ou deixam de existir em sua função. Isso não é bom nem mal, apenas é.

E o pequeno Promessa de Luz ficou ali sentado um tempo tentando entender as palavras que o Pai da Aldeia havia falado, até que, mais calmo perguntou: - Pai, é por isso então que de acordo com o tempo e conforme eu vou crescendo, eu consigo enxergar mais longe e fica parecendo que o mundo está crescendo comigo e, eu fico mais e mais ansioso por entendê-lo, mas nunca consigo encontrar as mudanças ?

- É isso mesmo Promessa de Luz. O mundo muda de acordo com a mudança da percepção que temos dele. Mas o mundo é e será sempre o mesmo mundo. Vamos andar um pouco mais ? E, foram.

Andaram mais uns quarenta minutos até chegarem a uma Praia deslumbrante, com águas limpas, areia branca e muitos pássaros muito diferentes. Aquela visão foi muito forte para o pequeno índio. Ele começou a berrar e a pular de felicidade, como somente as crianças sabem fazer. Assustou-se com as ondas, foi até a margem do Mar e provou a água, imaginando ser igual a do Rio que passava ao lado da aldeia e descobriu que era salgada. Entrou devagarinho e com medo, até o limite das suas pernas. Ia e voltava correndo, seguindo o intervalo das ondas no Mar. Enquanto o Cacique apenas observava aquilo tudo com muita calma e serenidade.

Quando o menino cansou e sentou-se na areia, o Cacique levantou-se e correu para o mar onde deu um mergulho formidável, daqueles que só um herói sabe dar. A princípio o pequeno índio ficou muito preocupado, será que o Pai da Aldeia estava bem ? Estava.

Depois do mergulho, o Cacique voltou para a areia e sentou-se ao lado do menino, que tinha os olhos vidrados pela emoção, e começou a falar.

- Este é o Mar, ele é maior que eu, que você, que toda a Aldeia e mesmo que o limite da vista de todos nós juntos. Sabe, Promessa de Luz, a primeira vez que eu vi o Mar, tive uma reação bem parecida com a sua, um êxtase seguido de medo.  O Pai da Aldeia daquele tempo, me levou para dentro do Mar e me ensinou a respeitá-lo, e pouco a pouco fui perdendo o meu medo. O êxtase voltou ao seu lugar e eu pude mergulhar e me entregar ao Mar da mesma forma que ele se entregava para mim. Foi maravilhoso ! É claro que antes disso acontecer, eu me enrolei com algumas ondas, tive que aprender a nadar e a mergulhar, até que um dia eu pude entrar no Mar sozinho e sem medo.

- Você está dizendo que se eu quizer, basta eu conhecer o Mar e respeitá-lo para perder o medo que estou sentindo e dominá-lo por completo?

- Promessa de Luz, o que você quer dizer com conhecer o Mar ? Parece possível para você conhecer essa imensidão ou mesmo dominá-lo ? Não parecia, e o pequeno índio ficou um tempo quieto sem compreender. Quando falou, perguntou: - Mas como é que eu posso não ter medo de alguma coisa que eu não conheço, que eu não domino e que é muito diferente de mim ?

- Só existe uma maneira. Você precisa acreditar. Acreditar em você e no Mar. O que você tem que dominar é você mesmo, o que você tem que conhecer é você mesmo. Você só tem você, e isso não é nem bom nem mal. Quanto as diferenças, nós também não somos iguais, o Céu também é diferente, o Rio é diferente, a sua cabana é diferente da minha, enfim: nada é igual, e nem por isso você deve se afastar ou temer.

As coisas começavam a fazer um pouco mais de sentido na cabeça do pequeno Promessa de Luz. Depois de um tempo meditando o pequeno pediu para o Pai da Aldeia levá-lo até o Mar e começou pouco a pouco a se entregar aos caprichos das ondas, primeiro apenas com a mão dada ao Pai da Aldeia e, pouco a pouco, sozinho começava  a se entregar. Passaram a maior parte do dia na Praia, até que decidissem voltar. E, voltaram.

No caminho de volta, o pequeno Promessa de Luz, já não se sentia tão pequeno assim e depois de uma boa caminhada, pediu para parar um pouco e sentou-se ao lado do Cacique e perguntou: - Pai da Aldeia, algo de diferente aconteceu comigo hoje. Conheci muita coisa e, sinto que há muito mais a conhecer. Tenho a sensação de estar crescendo e isso é melhor do que a aflição e o medo e a angústia que eu estava sentindo. Mas, e se um dia eu parar de crescer, esses sentimentos ruins voltarão ?

- Hoje, como todos os dias, foi o primeiro dia do resto da sua vida, e você soube vivê-lo com intensidade e descobriu muitas coisas que não conhecia. Amanhã talvez você descubra mais um pouco e depois um pouco mais ainda, e é assim que a vida é e, sempre vai ser. Não há porque temer a volta de sentimentos que podem trazer para você a certeza de que você sempre estará crescendo, assim como eu estou. É como as ondas no Mar, que nunca são iguais e não param de se repetir e mudar e evoluir. Imagine se o Mar desistisse de fazer ondas, como é que você acha que as coisas iam ficar ?

- Acho que o Mar deixaria de ser Mar, para não ser nada. Porque são as ondas que fazem dele o que ele é. É como se o Sol apagasse, ou se as árvores deixassem de dar frutos ou a grama parasse de crescer ou se as histórias deixassem de ser contadas. O Mundo deixaria de ser Mundo, para não ser nada.

O Cacique sorriu feliz por perceber que Promessa de Luz realmente tinha compreendido a mensagem, e levantaram para voltar a Aldeia. E, voltaram.


Naquela noite o Cacique pediu licença ao mais velho dos homens da tribo para contar uma história, e contou esta que está escrita aí em cima. Depois, chamou o índio para o centro do grupo e, em um ritual solene avisou a quem quisesse saber que daquele dia em diante Promessa de Luz deveria ser chamado de Raio de Sol, porque naquele dia ele tinha descoberto o seu próprio brilho, e a  promessa de luz havia sido cumprida.

Depois de colocar a história no papel o Poeta releu, mudou os erros que os poetas se permitem fazer e releu mais uma vez. Depois decidiu entregá-lo para outra Promessa de Luz, com esperança de um dia poder vê-la se transformar em Raio de Sol.

Rio, 28 de Setembro de 1995

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