quarta-feira, 4 de julho de 2012

Deixe-me ir, preciso andar...

Cartola e Candeia passeavam pela Lapa. Haviam combinado o encontro uns dias antes quando Candeia disse que tinha um samba novo que precisava mostrar ao amigo.

Cartola andava aborrecido. Sua companheira Deolinda havia falecido recentemente e ele estava desgostoso com os companheiros do Morro da Mangueira. Reclamava sempre que eles estavam fazendo as coisas da maneira errada. Que o samba estava sendo maltratado e que o mundo estava muito mudado. Nessa época, ele ainda não sabia que o mundo é um moinho.

Candeia, já estava de cadeira de rodas depois de ter as pernas paralisadas com os cinco tiros levara de um caminhoneiro com quem havia se envolvido em um acidente. Truculento e impaciente, Candeia havia estourado os pneus do caminhão, descarregando seu revolver com raiva após o acidente. Sem defesa, tornou-se alvo fácil para o caminhoneiro que não deixou barato para o policial de então. E tudo por conta da praga de uma prostituta que ele havia esbofeteado um dia antes – pensava ele.

A deficiência física e a aposentadoria compulsória levaram Candeia a se dedicar apenas ao mundo da música. A dificuldade de sair de Oswaldo Cruz para encontrar os amigos era menor do que a vontade de mostrar as novidades para os bambas que escreviam a história do samba junto com ele.

- Angenor, fiz esse sambinha mas não consigo chegar no ritmo. Leia e veja o que você acha.

Cartola segurou o papel por muito pouco tempo e o devolveu pedindo que o amigo lesse para ele, explicando que na sua voz seria mais fácil imaginar a música, mas na verdade disfarçando o pouco estudo que tivera a chance de ter.

Candeia leu os versos que começavam com: “Deixe-me ir, preciso andar...”. Cartola riu: - Candeia como é que você começa uma música sua dizendo que precisa andar rapaz? Candeia também riu, mesmo não gostando da graça, e respondeu: - Me deixe continuar Angenor, a música não fala de mim, fala de gente perdida, de tempos perdidos. E retomou a letra do início:


Deixe-me ir
Preciso andar Vou por aí a procurar rir pra não chorar


Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver...


Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar


Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar
Depois que me encontrar...
Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver...


Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar...


- Rapaz essa letra é triste demais. Leia de novo, pediu Cartola, prontamente atendido pelo amigo.

Dos olhos fundos do sambista maior escorreu uma lágrima. Cartola sabia que aquela música dizia para ele que era preciso ir embora, que era preciso buscar outras coisas, outras pessoas, outros mundos.

- Tá aí Candeia, você tem razão. Essa música não fala só de você, fala de mim, fala do samba, fala do coração de quem precisa ser livre para viver.
- Também gostei da letra Angenor, mas não encontro o ritmo. Leio e releio mas não sei como fazer dos meus versos uma música. Preciso da sua ajuda.

E Cartola explicou que a melodia já estava feita e que ele não poderia melhorar aquilo que havia nascido do fundo do coração do amigo. Pegou o papel, fingindo que lia, e declamou pausadamente a letra do amigo apenas marcando as frases nos pontos certos. Declamava e imaginava um pandeiro ao fundo mostrando que  era um samba. Declamava e chorava ao mesmo tempo.

- Angenor, grava isso pra mim amigo. Põe isso numa fita para eu mostrar pros homens. Estou precisando levantar algum e se essa música der certo, a vida vai melhorar.
- Posso ficar com esse papel? Perguntou Cartola já guardando a letra no bolso, sabendo que Candeia sempre guardava cópia de suas letras.
- Claro que sim Angenor, mas me prometa que você vai gravar a música;
- Prometo Candeia, mas não esqueça que ela já está pronta.

E os dois se separaram. Cada um pro seu morro. Cada um para a sua escola. Candeia ainda escreveria muitos outros temas. Cartola foi direto para sua casa fazer uma trouxa de roupas e ganhar o mundo. E por quase dez anos, ninguém soube dele.


5 comentários:

  1. O nome do Cartola é Angenor, corrija pelo amor de deus.

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  2. Como descobriu esta historia, nao encontrei em canto algum esse relato, apenas que foi composto por Candeia a pedido de Juarez Barroso, um jornalista. Queria saber se Candeia chegou a gravar a musica também.

    Abraço

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    1. Prezado (a), não descobri. Essa história é uma ficção e, infelizmente, também não conheço a história de fato. abs

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    2. Entendo. Bem que eu estranhei. És estudioso de historia do samba e afins? Se pudesse pesquisar. Eu queria saber como Cartola acabou gravando esse samba, se ele era amigo de Candeia e tal, não tem nada, nenhum relato.

      Alias, a história é sua? Muito interessante de qualquer forma. Eu queria saber se Candeia gravou ela na integra já que no documentario Eu Sou o Povo tem ele cantarolando a introduçao dela

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