segunda-feira, 9 de julho de 2012

Nas Asas da Panair I


Filha de alemãs, ela havia nascido em uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul. Em casa, falava apenas a língua germânica. Na rua manteve-se em silêncio durante boa parte da sua infância. Os alemães não eram bem vistos no pós-guerra. A família teve uma história rica de acontecimentos. Um passado que enchia a todos com orgulho do próprio sobrenome, mas isso é para outra hora.

Ela sempre foi uma menina bonita. Muito mais bonita que as meninas da sua idade e mesmo que as outras mulheres da sua família. Seu destino passaria pela beleza. A infância e a adolescência foram vencidas com sacrifício. Sua mãe, lutadora, não deixou faltar nada, mas mantinha rigor na criação de todos. Ela havia vivido os racionamentos dos tempos da guerra na Europa e por isso não admitia desperdícios de qualquer espécie, principalmente à mesa. Educação era o básico, ainda que houvesse a barreira da língua. Todos os filhos tiveram suas oportunidades e todos se agarraram a ela.

Um dia, já no final dos tempos de colégio, a rádio local anunciou que haveria um concurso promovido pela Panair do Brasil. Com o sugestivo nome de Miss Panair o evento reuniria as moças mais bonitas da cidade para uma disputa por um dos prêmios mais cobiçados da época: um emprego de aeromoça na companhia símbolo da aviação brasileira daqueles tempos.

- Você ouviu sobre o concurso? Já se inscreveu? Perguntava a amiga mais próxima. Ela havia ouvido, mas não estava disposta a por sua beleza à prova. Como? Claro que você vai participar, você sempre foi a moça mais bonita da cidade, não pode deixar uma oportunidade dessas passar. E ela ouvia sem se convencer.

- Inscrevi você no concurso! Informou a amiga.
- Como assim? Eu ainda não me decidi.
- Eu decidi por você. Fiquei pensando. Entendo sua ligação com a família e com a sua terra, mas seu lugar não é aqui. Você vai ganhar o mundo, viajar, conhecer pessoas e terras novas. E com isso poderá dar de volta a sua mãe tudo aquilo que ela sempre lhe deu. É seu destino!
- Mas a filha do prefeito também vai participar e com certeza tem mais chances do que eu. Acho que vou me expor por nada. Tenho todas as dúvidas.
- Quem deve temer é ela e você sabe disso. Ela não é bonita como você apenas tem mais dinheiro para as maquiagens e roupas, mas não é isso o que vai decidir o concurso.

E, convencida pela amiga, ela foi contar a novidade em casa. Os irmãos e principalmente a irmã mais próxima vibraram. A mãe não se empolgou. Disse-lhe que queria pensar um pouco mais sobre o assunto e que ela não deveria ficar tão animada.

No dia seguinte, ainda antes do café-da-manhã, mãe e filha passavam o café e conversavam sobre o concurso. - Minha filha, você é realmente uma moça linda, mas sabe muito pouco da vida, dos homens, do mundo fora dos limites da cidade. Eu mesma não tenho as melhores recordações do meu país. Você tem certeza de que quer participar do concurso e quem sabe passar o resto da vida conhecendo o mundo? Tem certeza de que vai dar conta das dificuldades que terá pela frente?

E a filha respondeu dizendo que tudo o que ela conhecia do mundo era o que ouvia no rádio e via nas revistas de moda. Não havia sequer um cinema na pequena cidade. Ela queria ver lugares bonitos, conhecer a Alemanha, a França, a Suíça e vários outros lugares do mundo. – Mamãe... sinto que há muito para ser descoberto lá fora e acredito que, se não tentar, posso passar o resto da minha vida lamentando. Isso eu não quero.

E a mãe cedeu. Permitiu que a filha participasse do concurso que aconteceria em uma semana. Foi até a estante e alcançou, com dificuldade, uma caixa que servia como peso para que os livros não tombassem. De dentro tirou suas economias e entregou a filha recomendando que ela fosse comprar o tecido mais bonito que encontrasse para que ela pudesse fazer seu vestido para a disputa. Um beijo estalado de cumplicidade selou o momento e ela foi acordar a irmã para que fossem juntas à loja de tecidos.

... ...

O clube estava lindo. Todo iluminado e decorado para a grande noite. Toda a cidade estava presente. A família alemã não passou despercebida, muito menos a moça linda com vestido de baile copiado de uma das revistas de época. Logo na entrada a moça foi reconhecida como uma das concorrentes e separada da família que seguiu em frente em busca de seus lugares.

Os minutos se arrastavam. Ela estava sozinha na coxia do palco daquele clube recém-inaugurado. Olhava tudo com a surpresa de quem nunca frequentou os teatros e orquestras das grandes capitais. Junto dela vinte meninas excitadas soltavam pequenos gritos de nervosismo antevendo o desfile. Ela permanecia serena apesar de muito nervosa por dentro.

- Meninas, meninas. Venham aqui. Vou explicar como será o evento. E todas se reuniram em torno da organizadora para ouvir as recomendações.

A música marcaria a entrada de cada uma por ordem alfabética. Elas seriam chamadas e seguiriam acompanhadas pelo mestre de cerimônias. Primeiro até a frente do palco e depois de volta até o lugar onde deveriam permanecer aguardando o momento da entrevista.

E a música tocou e as borboletas voaram nos estômagos de todas aquelas moças do interior. A primeira deixou a coxia com as pernas trêmulas, agarrou-se ao braço do radialista que naquela noite fazia as vezes de apresentador e seguiu. Os aplausos, ainda que pouco entusiasmados, tranquilizaram as demais.

Uma a uma, as moças eram levadas. A música subia e descia o tom. Os nomes eram falados e os aplausos escutados na sequência. O tempo passava arrastado. Ela sabia que seria a última, pois seu nome começava com a letra W. Os aplausos foram rareando e lá pela décima oitava apresentação a fórmula mostrou-se entediante. A décima nona quase não foi aplaudida e quase chorou em público.

Era sua vez. O radialista foi busca-la avisando ao público que a última moça estava para entrar. Um rumor de alívio tomou conta da plateia e da orquestra que já não aguentava mais repetir a mesma melodia.

E no momento em que ela entrou o maestro parou. Com os braços erguidos no ar ele não teve como continuar a reger os instrumentos. E eles pararam também. E um silêncio ensurdecedor tomou conta do teatro do clube.

Os jurados, quase adormecidos, foram acordados com aquele silêncio e olharam para ver o que acontecia. O canhão de luz a iluminava e a boca de cada um dos diretores e convidados da Panair para aquela noite de gala foi se abrindo com espanto. Sua beleza era maior, muito maior do que a de todas as demais concorrentes reunidas.

O pianista resolveu romper o silêncio e, mesmo com a ausência do maestro, começou a dedilhar o piano com a música mais tocada naquele ano: “Oh, Pretty Woman” que Roy Orbison havia recém-lançado e que todos do teatro conheciam bem. A reação foi imediata. Primeiro aplausos efusivos que foram ganhando o ritmo da música enquanto todos do teatro levantavam-se para aplaudir a linda moça aclamada vencedora sem nenhuma necessidade da entrevista. Os jurados não conseguiram se segurar e todos escreveram a nota 10 e levantaram o papel com o voto mostrando que ela era a única vencedora.

...

E esse foi apenas o início da vida da aeromoça que mudou destinos e que conheceu o mundo nas asas da Panair.

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